A LGPD também provocará impactos nos processos de recuperação judicial

De fato, a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), Lei 13.709/2018, é hoje o assunto mais comentado do direito brasileiro. Não por outro motivo, a análise de seus impactos em diversos mercados (como a própria advocacia e o ramo dos seguros) é constante. Contudo, pouco, ou nada, tem se falado sobre suas consequências, no âmbito da recuperação judicial, situação que merece uma análise mais cuidadosa.

Nessa direção, a Recuperação, apenas por sua condição de processo cujo trâmite ocorre dentro do Poder Judiciário, já se insere no espinhoso confronto entre a necessária publicidade dos atos processuais e a proteção de dados pessoais, ambos direitos tutelados pela Constituição da República. Além disso, no seu âmbito o problema se intensifica, vez que se caracteriza o procedimento pela multipolaridade, ou seja, multiplicidade de pessoas que dele participam. Logo, ganham especial atenção e destaque os mecanismos que não subtraem as informações a respeito dos processos, mas, ao mesmo tempo, garantem um acesso mais restrito às informações pessoais de suas partes (vide a Resolução n° 185/2013, CNJ) [1].

Mas não é só. O processo recuperacional, suma síntese, busca retirar a sociedade empresária da crise e garantir sua atuação continua, duradoura, no mercado de modo saudável. A fim de que esse objetivo se concretize, impulsiona-se uma negociação coletiva entre a recuperanda (devedora) e seus credores, elaborando-se – e aprovando-se- um plano de restruturação que deve ser cumprido. Sob um viés pragmático, não é difícil concluir que o desenvolvimento desse percurso exige que se destrinche toda a movimentação econômica da empresa, envolvendo a abertura de um histórico de informações, as quais nem sempre serão de participantes do processo.

Desse modo, a exceção do art.7°, §4°, LGPD, que dispensa o consentimento do titular dos dados pessoais quando ele mesmo torná-los públicos, deve ser aplicada com extrema cautela aqui. Nem sempre os dados presentes na Recuperação Judicial dizem respeito ao devedor ou aos credores, que os tornam públicos quando participam do processo. A título demonstrativo, suponha-se a divulgação aos credores de um plano contendo novas estratégias de mercado, o qual se baseia em um perfil de consumo dos produtos vendidos pela sociedade empresária e que foi criado através da junção de dados pessoais de consumidores.

Ora, a divulgação dessas informações não é exatamente proibida, todavia, a Lei Geral de Proteção de Dados exige cuidados específicos. Então, cogitam-se estratégias como tornar os dados anônimos (o que muitas vezes já é feito através de gráficos que dinamizam o entendimento do processo) e atentar-se à finalidade (art.6°, inciso I, LGPD), expondo somente o necessário. Tais precauções devem ser a regra a partir da vigência da lei.

Sob outra perspectiva, importante atentar-se para a transferência de dados entre sociedades empresárias ao longo do processo recuperacional. Afinal, tais atos pressupõe operação conjunta de credores, devedor e administrador judicial, o que pode atrair até a responsabilidade solidária por violação à proteção de dados pessoais (art. 42, §1°, incisos I e II, LGPD).

Cite-se o caso do uso de certos meios de recuperação judicial como a cisão parcial de sociedade empresária e o trepasse, arrendamento de estabelecimento (art. 50, incisos I e VII da Lei 11.101/05). Mais uma vez, será imprescindível atentar à finalidade, necessidade e adequação da transferência de dados (art.6°, incisos I a III, LGPD). Não se verificando a obediência aos referidos princípios, será viável refletir sobre a responsabilidade das sociedades empresárias envolvidas (recuperanda, nova empresa advinda da cisão ou a compradora do estabelecimento) e do administrador judicial que zela por todo o processo.

Logo, principalmente, advogados e administradores judiciais que trabalham com atividades empresárias em crise, além das próprias recuperandas, precisam incorporar a LGPD em seu cotidiano ou acostumar-se a trabalhar com advogados especialistas na área. Inclusive, esse parece o problema central para instaurar uma rotina de proteção de dados durante a reestruturação da sociedade empresária.

Ainda que não se olvide da importância da lei, a adaptação aos seus ditames implica em custos. E sua vigência, embora, sem dúvidas, não pudesse mais ser adiada, iniciou-se no meio de uma crise econômico-sanitária sem precedentes. Dessa maneira, aponta-se como uma hipótese desejável a expedição de um regramento específico pela ANPD (Agência Nacional de Proteção de Dados) para sociedades empresárias em recuperação, sobretudo, no presente momento, de início de vigência da lei, a respeito de prazos maiores para que elas busquem a conformidade com a lei. Essa competência já é prevista para o tratamento diferenciado de empresas de pequeno porte (art.55-J, inciso XVII), mas as potencialidades e limites de sua aplicação no âmbito da atividade empresária em crise merecem estudos mais detalhados.

Portanto, conclui-se que é tempo de encontrarem-se soluções inovadoras e de conciliar a importante preservação da empresa com a essencial proteção de dados pessoais. E todo o setor da economia que se movimenta em torno das empresas em crise deve atentar para isso.


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